sexta-feira, 23 de março de 2012

" O HOMEM QUE RESOLVEU CONTAR APENAS MENTIRAS"

Naquela manhã, acordou disposto a só contar mentiras. A não dizer uma única verdade. A ninguém.Nem à própria mulher; E assim quando afirmou: "vou para o trabalho",empregou a primeira mentira.Não ia.Tinha resolvido faltar,esquecer o escritório, a mesa, os papéis. Parar, ficar na rua. E quando disse bom -dia para o zelador do prédio, também mentia,porque odiava o zelador,um oportunista, que não conservava o prédio,fazia fofocas entre empregadas,pedia gorjetas,ganhava porcentagem na compra de materiais de limpeza.E quando disse o endereço ao motorista de táxi,também mentia, não pretendia ir para aquele lugar. Mas o chofer exigira o destino porque as pessoas vivem exigindo coisas.E nem sempre temos vontade ou possibilidade de satisfazer. E as exigências crescem e se tornam parte de nossa vida diária.
Nos acostumamos com elas, nos acomodamos, sem perceber que cada concessão é um pedaço da gente mesmo, envenenado, que a  gente engole.E quando o homem entrou no bar e pediu café, mentia,porque não queria café.Estava apenas fazendo um teste, enquanto observava o gesto maquinal daquele empregado que destacava uma ficha e a entregava.Será que aquele funcionário,alguma vez,já imaginou que alguém pudesse não querer café? Pedir, por pedir, mas não querer?Nem sequer desejar ver a xícara fumegante?
Com a ficha na mão,saiu pela rua.Outra mentira, não queria ficar na rua.Mas se entrasse no escritório,seria mentira maior.Odiava o escritório,o emprego,os colegas.De duas mentiras ,preferiu a menor, ainda que,ponderando,descobrisse que,ficar com a mentira menor era igualmente fuga,mentira,porque nesse dia tinha decidido mentir. E quando se decide uma coisa, o melhor é levá -la até o fim.
Andou.Pensando como a cidade era bonita com seus prédios batidos de sol e os vidros dando mil reflexos.Bonita com a gente que andava apressada para trabalhar e construir alguma coisa.Bonita na tranquilidade da vida, no sossego das casas,na calma que se estampava nos rostos das gentes.Bonita no que oferecia de futuro e de perspectivas.Bonita nos carros que andavam em fila,ruidosamente, um atrás do outro,sempre para frente, sempre para frente.Bonita na fumaça negra que escapava dos veículos e subia em espirais,milhares de fumaças reunidas, formando uma bela nuvem negra, como um negro véu que surgia sobre a terra, empanando o céu.
Andou sem querer andar.Viu, sem querer ver.Sentiu sem querer sentir,Cansou sem querer cansar.Tudo uma  grande mentira neste dia.Como mentira era a vida que ele vivia,cotidianamente,falsificada,pré fabricada,exaurida,imposta.Suada.Que repousante era viver este dia da mentira.Negar tudo.Reviver.
Andou até a hora de voltar para casa.Outra mentira, não queria voltar para casa,o lar, o aconchego, o refúgio, a fuga.A verdade de sua vida encerrada entre aquelas quatro paredes, a família, o amor,o carinho, o aconchego, o lar, o refúgio, a fuga, a realidade. Não voltar, e andar.Percorrendo as ruas, entrando nos prédios,conversando com as pessoas.No entanto, não tinha vontade de conversar.Sabia que precisava,mas não tinha vontade de falar.Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática.O medo é que um dia desacostumasse e perdesse a capacidade de se comunicar.Ficou parado numa esquina, esperando a noite passar. E quando o dia chegou, tinha acabado o período da mentira,podia enfrentar de novo a verdade.E disse bom dia ao porteiro,deu o endereço ao táxi,ligou para a mulher e o patrão.Disse no emprego que estava doente,E na verdade,estava.


                                Ignácio de Loyola Brandão

Um comentário:

  1. Esse texto do Ignácio estava num livro didático que eu tenho e desde que eu li pela primeira vez alguns trechos não me saíam da cabeça, excelente narrativa e diante da situação dramática do personagem, soube construir situações tão abstratas dos seus sentimentos, com uma sensibilidade primorosa.

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